Eu Quero Porque Quero

Gilmar Marcílio

06 de agosto de 20160

Euqueroporquequero_Charles_Segat

 

Não sou muito bom na arte de esperar. Quando quero algo (de ordem material ou emocional) tenho vontade de largar tudo e sair correndo em busca da satisfação do meu desejo. Li dezenas de livros budistas, pratiquei meditação, procurei estar consciente quando os fatos acontecem. Os resultados, até hoje, não são muito animadores. Atribuo parte desse meu comportamento ao entorno em que vivo, ao apelo reiterado de fazer tudo com pressa, como se o mundo estivesse para acabar. De certa maneira, o final de um dia, ou mesmo de um minuto, carrega dentro de si essa significação oculta. Mas é possível pensar diferente, eu sei. Em momentos como esses, me sinto como uma criança mimada que bate os pés, amarra a cara e diz: “Eu quero porque quero.” Pronto. Qualquer razão ou lógica desaparecem. Na maioria das vezes, não vai além disso. Mas, às vezes, vem junto a aceleração cardíaca, a vontade de deixar de lado o que estou fazendo e me lambuzar com o novo regalo. Sei que se fizer isso, no entanto, estarei aproveitando uma mínima parte do que mobilizou todo o meu ser. Não é sem razão que uma das primeiras tarefas que os mestres orientais nos propõem é paralisar a ação, analisando cuidadosamente o que desfoca a nossa mente. Segundo eles, a causa de grande parte do sofrimento humano advém da incapacidade de contemplar, de sentir-se feliz ANTES da posse.

Talvez percebendo essa minha inclinação, um amigo me presenteou, recentemente, com a palavra “Sensatez”, esculpida em madeira. E sugeriu, com delicadeza, que eu a colocasse numa bancada próxima à minha cama, onde permaneceria ao lado dos retratos de meus escritores preferidos. E, mais importante do que isso, naquele lugar seria impossível não perceber a  presença todos os dias antes de dormir. O efeito tem sido considerável, terapêutico até, mas sei que preciso caminhar muito ainda para chegar onde quero. Talvez eu deva acrescentar um outro vocábulo: paciência. Que maravilha conseguir respirar fundo antes de se atirar sofregamente sobre as coisas. Devo dizer, a meu favor, que junto a essa ansiedade carrego uma dose descomunal de gosto pela vida. Sinto vontade de mastigar em grandes bocados o que se apresenta diante de mim. Sou sôfrego, talvez porque meus olhos se iluminam diante de qualquer possibilidade de sentir intensamente. O que não diminui a vontade de me manter sob controle. Em algumas situações, consigo por em prática a difícil arte do equilíbrio. Em outras, mergulho sem rede, indiferente aos estragos que possa causar para mim mesmo. Ser do signo de escorpião deve ter alguma parcela nisso. Dizem que somos afeitos às paixões, que preferimos os abismos às planícies. Que os astros dividam a responsabilidade comigo. Fica mais leve.

Minha preocupação maior é a de não incomodar quem está próximo. Ser reservado continua sendo uma meta. E se divido sem grande pudor isso com os outros, é por saber que não me encontro sozinho ao tratar desse assunto. Essa talvez seja uma das grandes belezas do ato de escrever: irmanar-se em nossa frágil e nem um pouco original humanidade. Somos todos deveras parecidos. Quem não tropeça aqui, o faz de outra maneira, mas sempre o faz. Essa consciência deveria despertar em nós um sentimento de solidariedade. O dedo em riste sendo recolhido rapidamente, na certeza de que muitas acusações são auto-acusações. Não servem como justificativa para o “delito”, mas nos libertam do peso de sermos fracos, incapazes de dominar nossos instintos. Cada um recorre a um expediente para se aliviar da sensação de urgência. O meu é ler poesia, longe de tudo e de todos. Funciona como um calmante e me faz pensar com mais lucidez sobre o que me atormenta. A consequência é sempre benéfica, sendo que novas doses precisam ser injetadas periodicamente, sob risco de se incorrer no mesmo erro.

Esse é o meu Rivotril. A vantagem é não ser tarja preta e não criar dependência. Ao contrário, liberta, mesmo quando os sintomas insistem em fazer residência na alma. E o que se apodera de nós vai talhando, a ferro e fogo, a nossa personalidade. Depois de certo tempo, acaba sendo responsável por definir quem somos. Fulano é muito calmo, sicrano é uma bomba prestes a explodir, beltrano tem a rara qualidade de dar sempre o conselho certo. Vou ter que andar muito ainda antes de apaziguar o que tem o risco de provocar grandes incêndios. Insisto em correr quando seria preciso desacelerar. Falo demais quando o ideal seria ficar em silêncio. Ainda assim comemoro esses transbordamentos como uma espécie de amor ilimitado. Vibro porque não aprendi a economizar afetos. Não me peçam contenção: sou um homem de exageros. Tenho o defeito de me antecipar a tudo. As papilas gustativas entram em ação já na véspera. Sofro com isso, mas não deixa de ser uma forma de estender o prazer da festa. Quando alguém me dá um presente, minha vontade é de dizer: nem precisava embrulhar. Em alguns segundos o papel será reduzido a quase nada. Olho para o que recebi e me considero premiado na loteria. Sinto o gosto por antecedência. Será mesmo um defeito?

Um dia hei de ser elegante e sóbrio. Por enquanto, deixo a marca dos meus pés por onde passo. Mas continuo acordando com um gosto de felicidade na boca. Transgrido a etiqueta em nome da exuberância da vida.

 

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